quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

De: Paulo Freire, do livro Pedagogia da Autonomia

"Há um sinal dos tempos, entre outros, que me assusta: a insistência com que, em nome da democracia, da liberdade e da eficácia, se vem asfixiando a própria liberdade e, por extensão a criatividade e o gosto da aventura do espírito. A liberdade de mover-nos, de arriscar-nos vem sendo submetida a uma certa padronização de fórmulas de maneiras de ser, em relação às quais somos avaliados. É claro que já não se trata de asfixia truculentamente realizada pelo rei despótico sobre seus súditos, pelo senhor feudal sobre seus vassalos, pelo colonizador sobre os colonizados, pelo dono da fábrica sobre seus operários, pelo estado autoritário sobre os cidadãos, mas pelo poder invisível da domesticação alienante que alcança a eficiência extraordinária no que venho chamando "burocratização da mente". Um estado refinado de estranheza, de "autodemissão" da mente, do corpo consciente, de conformismo do indivíduo, de acomodação diante de situações consideradas fatalistamente como imutáveis. É a posição de quem encara os fatos como algo consumado, como algo que se deu porque tinha que se dar da forma como se deu, é a posição, por isso mesmo, de quem entende e vive a História como determinismo e não como possibilidade. É a posição de quem se assume como fragilidade total diante do todopoderosismo dos fatos que não apenas se deram porque tinham que se dar mas que não podem ser "reorientados" ou alterados. Não há, nesta maneira mecanicista de compreender a História, lugar para a decisão humana. Na medida mesma em que a desproblematização do tempo, de que resulta de que o amanhã ora é a perpetuação do hoje, ora é algo que será porque está dito que será, não há lugar para a escolha, mas para a acomodação bem comportada ao que está aí ou ao que virá. Nada é possível de ser feito contra a globalização que, realizada porque tinha de ser
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realizada, tem de continuar seu destino, porque assim está misteriosamente escrito que deve ser. A globalização que reforça o mando das minorias poderosas esmigalha e pulveriza a presença impotente dos dependentes, fazendo-os ainda mais impotentes, é destino dado. Em face dela não há outra saída senão que cada um baixe a cabeça docilmente e agradeça a deus ou à própria globalização.
Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que mecanismos que o minimizam.
A proclamada morte da História que significa, em última análise, a morte da utopia e do donho, reforça, indiscutivelmente, os mecanismos de asfixia da liberdade. Daí que a briga pelo resgate do sentido da utopia de que a prática educativa humanizante não pode deixar de estar impregnada tenha de ser uma sua constante.
Quanto mais me deixe seduzir pela aceitação da morte da História tanto mais admito que a impossibilidade do amanhã diferente implica a eternidade do hoje neo-liberal que aí está, e a permanência do hoje mata em mim a possibilidade de sonhar. Desproblematizando o tempo, a chamada morte da História decreta o imobilismo que nega o ser humano.
A desconsideração total pela formação integral do ser humano e a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo. Nesse caso, falar a, que, na perspectiva democrática é um possível momento do falar com, nem sequer é ensaiado. A desconsideração total pela formação integral do ser humano, a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo a que falta, por isso mesmo, a intenção de sua democratização no falar com.
Os sistemas de avaliação pedagógica de alunos e de professores vêm se assumindo cada vez mais como discursos verticais, de cima para baixo, mais insistindo em passar por democráticos. A questão que se coloca a nós, enquanto professores e alunos críticos e amorosos da liberdade, não é, naturalmente, ficar contra a avaliação, de resto necessária, mas resistir aos métodos silenciadores com que ela vem sendo às vezes realizada. A questão que se coloca a nós é lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação
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enquanto instrumento de apreciação do que fazer de sujeitos críticos a serviço, por isso mesmo, da libertação e não da domesticação. Avaliação em que se estimule o falar a como caminho do falar com.

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